Apenas 1 a cada 3 homicídios foram esclarecidos no Brasil, aponta estudo
Intitulado “Onde Mora a Impunidade?”, o estudo mostra que, em 2021, foram esclarecidos 35% dos 40.240 homicídios dolosos (aqueles com a intenção de matar) ocorridos no Brasil
Primeira Mão Notícias
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Se a impunidade é combustível para a prática de crimes, o Brasil tem tudo para manter sua liderança global em números absolutos de homicídios, como apontou relatório da ONU divulgado na semana passada.
Isso porque, em média, apenas 1 de cada 3 homicídios ocorridos no Brasil entre 2015 e 2021 foi esclarecido, de acordo com estudo inédito do Instituto Sou da Paz.
Intitulado “Onde Mora a Impunidade?”, o estudo mostra que, em 2021, foram esclarecidos 35% dos 40.240 homicídios dolosos (aqueles com a intenção de matar) ocorridos no Brasil. Em 2015, foram elucidados 32% dos 52.463 homicídios do país.
Os melhores resultados em esclarecimento das mortes ocorridas em 2021 estão em Minas Gerais e no Paraná, ambos com taxa de 76% de elucidação. No outro extremo, com os piores resultados, estão os estados da Bahia e do Rio Grande do Norte, que esclareceram, respectivamente, 15% e 9% de seus homicídios de 2021.
“Quando o Estado não investiga de forma correta e não responsabiliza os autores de uma morte, dá o recado de que esses crimes não são importantes. Isso é um incentivo para que eles continuem acontecendo”, explica a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo.
Segundo ela, esclarecer os homicídios é essencial para que a população brasileira confie na segurança pública e no sistema de Justiça. “Quando o Estado não dá resposta, a sociedade perde a confiança nas instituições, lançando mão, muitas vezes, de formas não republicanas de resolução de conflitos.”
Ela se refere a práticas como o linchamento -que mais que dobrou no estado de São Paulo entre 2020 e 2021- e o justiçamento, expresso em casos como o do grupo de moradores de Copacabana, no Rio, que passaram a se organizar para caçar supostos criminosos.
Com a terceira maior população prisional do planeta, o Brasil tem 642.638 pessoas presas em regime fechado, das quais 11% estão atrás das grades por causa de homicídios. A maioria dos presos do país foi acusada de crimes contra o patrimônio (40%) ou por aqueles relacionados a drogas ilícitas (21%).
“A literatura em criminologia aponta que uma das ações mais eficazes na redução de homicídios é prender os homicidas. Mas esse entendimento não está consolidado na cabeça dos policiais nem dos governadores”, afirma Arthur Trindade, professor da Universidade de Brasília (UNB) e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal. “A roda dessa história só vai se mover no Brasil quando tivermos um índice nacional de resolução de homicídios.”
Trindade explica que as informações sobre homicídios estão divididas em sistemas de dados de três instituições diferentes: a Polícia Civil, que investiga a autoria dos assassinatos, o Ministério Público, que denuncia quem foi apontado pelas investigações como autor, e o Tribunal de Justiça, que julga os casos.
“Essas instituições são como três planetas distintos, que só vão se alinhar se houver um esforço coordenado, o que nunca aconteceu”, critica ele.
A Polícia Civil do Rio Grande do Norte, pior estado em esclarecimento de homicídios segundo o estudo, informou, por meio de nota, que vem passando por uma reestruturação, com aumento de efetivo e aquisição de equipamentos, que “tem contribuído tanto com a redução de mortes violentas intencionais quanto com a taxa de elucidação”. A nota informa que “não há uma padronização nacional de indicador de resolutividade de inquéritos de homicídios”, e que as Polícias Civis dos estados se articulam para a criação de um Índice Nacional de Elucidação de Homicídios “com parâmetros que poderão ser aferidos pelos órgãos se Segurança Pública”.
Procurada, a Polícia Civil da Bahia não se pronunciou sobre a posição do estado no ranking do estudo.
Procurados, o Ministério da Justiça (MJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não responderam aos questionamentos da Folha até a publicação desta reportagem.
Para José Luiz Ratton, professor do departamento de sociologia da UFPE (Universidade Federal do Pernambuco), falta coordenação do trabalho policial com estratégias de segurança dos estados e do governo federal.
Ratton foi responsável por um plano de redução de homicídios, o Pacto Pela Vida, que derrubou as taxas pernambucanas em 33% entre 2008 e 2013. Segundo ele, o programa conseguia coordenar as atuações das polícias, do Ministério Público e do Judiciário.
“Não é possível pensar que o país tenha 40 mil homicídios ao ano e não tenha como estratégia central prevenir e dissuadir homicídios. É preciso qualificar os dados sobre isso e incorporar o que tem de mais contemporâneo em termos de integração dos sistemas. O Ministério Público tem de ter participação mais ativa nesse processo porque tem mandato constitucional para isso.”
Para calcular as taxas de esclarecimento de homicídios referentes a crimes ocorridos em 2020 e em 2021, o Sou da Paz solicitou aos Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça de todos os estados, via Lei de Acesso à Informação, dados sobre a ocorrência de homicídios dolosos que geraram denúncias criminais no mesmo ano do crime ou no ano seguinte.
Das 27 unidades da federação, 11 enviaram dados incompletos para os crimes ocorridos em 2021, e ficaram de fora do estudo. “Estamos melhorando a coleta de dados de elucidação, mas não sua transparência. Essa é uma produção da informação para fins burocráticos, sem se pensar efetivamente na qualidade do monitoramento e do acompanhamento dos casos”, avalia Ludmila Ribeiro, pesquisadora do Crisp (Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública) da Universidade Federal de Minas Gerais.
Para o delegado Rodolfo Laterza, presidente da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil), é impreciso medir a efetividade do trabalho policial de investigação de homicídios a partir das denúncias oferecidas pelo MP. “Muitas vezes, o inquérito é encaminhado para o MP com resolutividade, mas o MP, por inúmeras razões, não oferece a denúncia.”
Os dados do relatório divulgado agora se referem aos dois anos mais graves da pandemia da Covid-19 (2020 e 2021), contexto dificultou as investigações.
Mas o fato é que a redução de 23% no número total de homicídios dolosos entre 2015 e 2021 não levou a um aumento na proporção de casos solucionados.
“O que a literatura internacional mostra é que, quando se tem mais homicídios, fica mais difícil de elucidar os casos porque é preciso dividir esforços”, aponta a pesquisadora da UFMG.
Para ela, o bom desempenho mineiro na elucidação de homicídios tem a ver não apenas com a queda dessas mortes no estado, mas com um modelo de gestão de dados implementado pela polícia civil local que leva em consideração os tipos de homicídio em que há maior taxa de sucesso das investigações e o direcionamento de maiores esforços aos casos considerados mais difíceis.
Segundo Trindade, há homicídios mais fáceis de resolver, em que a autoria é mais facilmente identificável. “A dificuldade da polícia, nestes casos, é operacional: chegar o mais rápido possível nas informações enquanto as provas estão quentes e as pessoas, dispostas a cooperar.”
A série histórica do índice do Sou da Paz mostra que 2 a cada 3 homicídios esclarecidos foram elucidados no mesmo ano da morte.
Outros homicídios, diz Trindade, são de difícil elucidação. Em geral, são aqueles em que vítima e autor não se conheciam e, em grande parte, aqueles ligados a facções criminosas e a mercados ilícitos.
“É difícil investigar esses homicídios porque há pressão nos territórios dominados por facções para que a informação não circule”, explica Ratton.
Existe ainda, aponta a diretora-executiva do Sou da Paz, o fator político. “É preciso de investimento das polícias civis, em perícia e na criação de departamentos especializados em homicídios, além da gestão de informação e do acompanhamento dessas métricas.”
Para Carolina Ricardo, a impunidade pode morar não só na capacidade de investigação das polícias civis, mas na priorização dada a esses crimes pelos governos, e na atuação do Ministério Público e do Judiciário brasileiros.