Câmara aprova reforma tributária em votação histórica
A proposta fica agora a um passo da promulgação
Primeira Mão Notícias
IDIANA TOMAZELLI E VICTORIA AZEVEDO
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Em uma votação histórica, a Câmara dos Deputados deu novo aval nesta sexta-feira (15) à reforma tributária, que unifica cinco tributos sobre consumo e coloca o Brasil no mapa dos países que adotam um sistema IVA (Imposto sobre Valor Agregado). A proposta fica agora a um passo da promulgação.
O texto da PEC (proposta de emenda à Constituição) foi aprovado em primeiro turno por 371 votos a 121. Foi uma larga vantagem em relação aos 308 votos necessários para uma alteração constitucional, mas inferior ao placar de 382 a 118 observado na primeira votação na Câmara, em julho.
Cerca de quatro horas depois, o texto-base foi aprovado em segundo turno pelo plenário, por 365 votos a 118. Há ainda previsão de destaques, que podem resultar em alterações no conteúdo da proposta.
Segundo o relator, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), a reforma seguirá para a promulgação pelo Congresso Nacional. “Fizemos [as mudanças] de forma a não ter devolução para o Senado. […] Estaremos prontos para promulgar a reforma tributária do Brasil”, disse.
A promulgação, no entanto, será o primeiro passo de um longo percurso até a implementação efetiva do novo sistema tributário, que começará em 2026 e será concluída no início de 2033.
O Executivo terá até 180 dias a partir da promulgação para enviar os projetos de lei complementar que regulamentarão a reforma. O governo trabalha com o envio de três a quatro propostas para definir regras e alíquotas dos novos tributos, os regimes específicos de setores que ficarão fora do alcance do IVA, entre outros temas.
O sinal verde dos parlamentares estabelece um marco inédito. Pela primeira vez sob o regime democrático, Câmara e Senado convergiram em torno das bases de uma reforma ampla para sepultar o atual sistema tributário, criado ainda na década de 1960.
“Conseguimos vencer o que parecia impossível”, disse Ribeiro a jornalistas ainda no plenário, bastante emocionado. Segundo ele, a descrença daqueles que se resignavam com o atual sistema, apesar de todas as distorções, foi o obstáculo mais difícil. “Vencemos o medo do novo.”
A reforma foi aprovada com apoio dos dois grandes blocos da Casa, que juntos reúnem siglas como União Brasil, PP, PSB, MDB, PSD e Republicanos, além da base governista, que inclui o PT e o PC do B. O PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro, orientou contra a proposta.
A aprovação dá aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), uma desejada marca emblemática às suas gestões.
A proposta também representa uma vitória para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que deu apoio decisivo à PEC. Desde o início do ano, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) colocou a reforma como um dos pilares de sua agenda.
O ministro criou uma secretaria extraordinária voltada ao tema, comandada por Bernard Appy -formulador técnico da versão inicial da PEC 45, uma das bases para a reforma aprovada. O secretário acompanhou a sessão direto do plenário da Câmara, repetindo o ritual das votações anteriores.
Além do empenho político, Haddad precisou negociar concessões e abrir os cofres da União. O governo aceitou injetar recursos em um fundo para bancar novos incentivos regionais, que alcançarão R$ 60 bilhões a partir de 2043. A resistência em dar essa compensação aos estados era um obstáculo histórico ao avanço da reforma -embora o valor definido gere preocupações sobre seu impacto na sustentabilidade fiscal do país.
Na leitura do novo parecer, Ribeiro destacou o empenho de Haddad e Lula. “Não vamos politizar, mas foi preciso, sim, o presidente resolver aportar os recursos do Fundo de Desenvolvimento Regional. Se não, não tinha reforma. No passado não tivemos porque esse tema federativo não conseguia andar. E precisava dessa decisão de quem compreendesse a federação como um todo”, afirmou.
Apesar do feito histórico, a votação se deu em um plenário esvaziado, uma vez que muitos parlamentares já haviam retornado às suas bases e participaram de forma remota. A insistência de Lira em manter a sessão nesta sexta desagradou a membros do Senado, para quem a discussão de uma reforma tão relevante não poderia ser feita nessas condições.
Além disso, o novo parecer foi divulgado por volta das 14h, logo antes da sessão. Embora as mudanças sejam pontuais, parlamentares da oposição reclamaram da falta de tempo para analisar as alterações.
O relatório de Ribeiro formalizou uma série de acordos negociados entre lideranças nos dias que precederam a votação. “Até a divergência está acordada”, disse o relator em tom de brincadeira.
Ele excluiu cinco grupos de atividades dos regimes específicos de tributação, que ficarão fora do novo IVA, entre eles saneamento, concessão de rodovias e serviços de transporte aéreo.
O relator também descartou a chamada cesta básica estendida. Será mantida apenas a chamada Cesta Básica Nacional aprovada pela Câmara, uma lista mais restrita de itens que terá desconto de 100% da alíquota do novo IVA.
Para Ribeiro, eventual necessidade adicional de amenizar o efeito da reforma sobre o bolso das famílias poderá ser resolvida via “cashback”, mecanismo de devolução de tributos para consumidores de baixa renda.
Por outro lado, o relator manteve a alíquota intermediária, equivalente a 70% da padrão, para profissionais liberais como advogados, engenheiros e outras profissões regulamentadas. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), afirmou que o próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), solicitou a preservação deste artigo na reforma.
Ele também preservou a criação de fundo para beneficiar os estados com áreas de livre comércio (Acre, Rondônia, Roraima e Amapá), a ser abastecido com recursos da União.
Pivô de uma das principais divergências entre as duas Casas, a cobrança da Cide (Contribuição sobre Intervenção de Domínio Econômico) sobre bens com produção similar na Zona Franca de Manaus também foi retirada do texto.
O relator no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), defensor da Zona Franca, concordou com a mudança porque foi garantida a manutenção do atual IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para proteger a indústria da região.
O impasse surgiu porque governadores das regiões Sul e Sudeste discordavam do trecho da PEC que carimbava a arrecadação da Cide para o fundo do Amazonas. As receitas do IPI, por sua vez, são repartidas entre União, estados e municípios.
“Construímos as soluções necessárias para entregarmos, se Deus quiser hoje, um dia histórico, a reforma tributária do nosso país, que traga mais simplificação, mais transparência, mais justiça, menos cumulatividade, mais segurança jurídica e, sobretudo, que nos coloque num outro patamar de país em relação ao sistema tributário”, afirmou Ribeiro logo após a divulgação do texto.
As exceções para diferentes setores contribuem para tornar o novo sistema mais complexo e reduzir seu impacto positivo sobre a economia. Também tornam mais pesado o fardo tributário a ser carregado pelos setores não contemplados.
Por isso, na avaliação do governo, as mudanças tendem a reduzir um pouco a alíquota padrão do novo IVA, calculada pelo Ministério da Fazenda entre 26,9% e 27,5% na versão aprovada pelo Senado. Ainda assim, a cobrança deve ser uma das mais elevadas do mundo.
O relator chegou a excluir um “jabuti” inserido pelo Senado, que estendeu aos auditores fiscais de estados e municípios o teto remuneratório praticado na União (R$ 41.650,92). Hoje, os salários desses servidores têm como teto a remuneração de governadores e prefeitos, respectivamente. No entanto, por 324 a 142 votos, os deputados reintroduziram essa mudança no texto.
A reforma aprovada prevê a fusão de PIS, Cofins e IPI (tributos federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal) em um IVA dual. Uma parcela da alíquota será administrada pelo governo federal por meio da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), e a outra, por estados e municípios pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços).
Também será criado um Imposto Seletivo sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde (como cigarros e bebidas alcoólicas) ou ao ambiente, à exceção dos produzidos na Zona Franca de Manaus.
A implementação dos novos tributos começará em 2026, com uma alíquota teste de 0,9% para a CBS e de 0,1% para o IBS.
Em 2027, PIS e Cofins serão completamente extintos e substituídos pela nova alíquota de referência da CBS. As alíquotas do IPI também seriam zeradas para a entrada em vigor do Imposto Seletivo, com exceção dos bens produzidos na Zona Franca.
A migração dos impostos estaduais e municipais para o novo IBS será mais gradual, dada a necessidade de dar segurança jurídica a benefícios já concedidos sob o atual sistema. Por isso, ICMS e ISS serão totalmente extintos apenas em 2033.
Para a regulamentação, o governo trabalha com o envio de três a quatro propostas, uma para criar o comitê gestor formado por estados e municípios, a segunda para estabelecer as regras e alíquotas dos novos tributos (incluindo os regimes específicos de setores) e a terceira para tratar do Imposto Seletivo. A quarta pode ser necessária para tratar de repasses aos estados por meio dos fundos criados na PEC.
Grande parte dos especialistas afirma que a reforma será positiva para o país. Os argumentos são de que a alíquota do novo IVA é reflexo da atual carga tributária, já elevada, e a simplicidade do novo sistema tende a gerar ganhos de produtividade e eficiência, impulsionando o crescimento da economia.
Na ponta, os consumidores saberão com exatidão quanto pagam de tributo sobre cada bem ou serviço -um ganho de transparência em relação ao modelo atual. As famílias mais vulneráveis poderão ter o reembolso de parte dos valores recolhidos por meio do “cashback”.
Um estudo feito em 2020 pelos economistas Débora Freire (hoje subsecretária de Política Fiscal do Ministério da Fazenda) e Edson Domingues estima que a migração para o sistema IVA pode gerar um crescimento adicional de 4,14% do PIB (Produto Interno Bruto), antes mesmo de incorporar os ganhos de produtividade das empresas. O dado deve ser interpretado como o efeito positivo do fim das ineficiências causadas pela enorme variedade de alíquotas e a cobrança em cascata de tributos.
Outro estudo mais recente, divulgado pela FGV EPGE em outubro de 2022, aponta que o PIB brasileiro pode crescer até 7,9% só com a uniformização de alíquotas e o fim da cumulatividade. Os cálculos foram feitos por por Pedro Cavalcanti Ferreira, Bruno Delalibera, Diego Gomes e Johann Soares.
ENTENDA A REFORMA TRIBUTÁRIA SOBRE O CONSUMO
Tributos extintos
– PIS (federal)
– Cofins (federal)
– IPI* (federal)
– ICMS (estadual)
– ISS (municipal)
*Cobrança será mantida sobre bens com produção similar na Zona Franca de ManausTributos criados
– CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), na esfera federal
– IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), de competência estadual e municipal
– Imposto Seletivo (sobre produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente)
– Operações tributadas pela CBS e pelo IBS
– Serviços, bens (materiais ou imateriais) e direitos, inclusive nas importações
– Não incidem sobre exportações, com previsão de devolução do tributo pago pelo exportador sobre insumosAlíquotas
Padrão: Fazenda estimou entre 26,9% e 27,5% no Senado, mas exclusão de exceções pode reduzir cobrança
Intermediária: 70% da padrão, concedida a profissionais liberais de categorias regulamentadas (ex: advogados, engenheiros, contadores)Reduzida: 40% da padrão, válida para as seguintes atividades:
– serviços de educação
– serviços de saúde
– dispositivos médicos
– dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência
– medicamentos
– produtos de cuidados básicos à saúde menstrual
– serviços de transporte coletivo rodoviário e metroviário de caráter urbano, semiurbano e metropolitano
– produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura
– insumos agropecuários e aquícolas
– alimentos destinados ao consumo humano
– produtos de higiene pessoal e limpeza majoritariamente consumidos por famílias de baixa renda
– produções artísticas, culturais, de eventos, jornalísticas e audiovisuais nacionais, atividades desportivas e comunicação institucional
– bens e serviços relacionados a soberania e segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernéticaOutras reduções autorizadas em lei complementar
– Isenção para transporte coletivo
– Redução em 100% da alíquota da CBS incidente sobre o Prouni
– Limite de receita anual de R$ 3,6 milhões para que o produtor rural pessoa física ou jurídica possa não pagar IBS e CBSRedução de 100% da alíquota total para:
– medicamentos e dispositivos médicos
– dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência
– produtos de cuidados básicos à saúde menstrual
– produtos hortícolas, frutas e ovos
– automóveis de passageiros adquiridos por pessoas com deficiência, pessoas com transtorno do espectro autista ou por taxistas
– atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanísticaRegimes específicos
– combustíveis e lubrificantes
– serviços financeiros, operações com bens imóveis, planos de assistência à saúde e concursos de prognósticos (loterias e apostas)
– sociedades cooperativas
– serviços de hotelaria, parques de diversão e parques temáticos, agências de viagens e de turismo, bares e restaurantes,
– atividade esportiva desenvolvida por Sociedade Anônima do Futebol e aviação regional
– operações alcançadas por tratado ou convenção internacional
– serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, ferroviário e hidroviárioCesta básica
– Criação da Cesta Básica Nacional: alíquota zero sobre produtos destinados à alimentação humana (ideia é fixar uma lista mais restrita)Cashback
– Possibilidade de devolução de tributos a pessoas físicas, com o objetivo de reduzir as desigualdades de renda
– Mecanismo será obrigatório para conta de luz e gás de botijão, focado em famílias de baixa rendaFundos
– Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, com recursos da União para estados, para financiar instrumentos de incentivo à atividade local (valor inicial de R$ 8 bilhões em 2029, chegando a R$ 60 bilhões anuais a partir de 2043)
– Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiros-fiscais do ICMS, destinado a compensar benefícios já concedidos a empresas e convalidados até 2032. Receberá R$ 160 bilhões da União entre 2025 e 2032
– Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas, com recursos da União (a ser detalhado em lei complementar)
– Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá, com recursos da União (a ser detalhado em lei complementar)Gestão do IBS
– Texto cria Comitê Gestor do IBS, estrutura semelhante à que já existe no Simples Nacional
– Membros: 27 representantes dos estados e do Distrito Federal, mais 27 membros representando o conjunto dos municípios e do DF (sendo 14 deles eleitos por maioria de votos e 13 deles por votos de municípios ponderados pelas respectivas populações)OS TRECHOS SUPRIMIDOS DA REFORMA TRIBUTÁRIA
1 – Regimes específicos para:
2 – serviços de saneamento e de concessão de rodovias
3 – serviços de transporte aéreo
4 – operações que envolvam a disponibilização da estrutura compartilhada dos serviços de telecomunicações
bens e serviços que promovam a economia circular
5 – operações com microgeração e minigeração distribuída de energia elétrica (painéis e fazendas solares).- Possibilidade de redução em 100% da alíquota na aquisição de medicamentos e dispositivos médicos por entidades de assistência social sem fins lucrativos
– Cesta básica estendida
– Dois dispositivos relacionados a combustíveis: um que atribuía fixação das alíquotas sobre combustíveis a resolução do Senado, e outro que não citava petróleo, lubrificantes e combustíveis entre os setores proibidos de usufruir dos incentivos da Zona Franca de Manaus
– Cide sobre bens com produção similar na Zona Franca de Manaus (mantendo cobrança de IPI)
– Dispositivo que submetia o nome do presidente do comitê gestor do IBS à aprovação pelo Senado Federal
– Mecanismo que premiava estados e municípios mais eficientes em seus sistemas de arrecadação com maior fatia na distribuição do bolo de recursos arrecadados com o IBS
– Artigo que estendeu aos auditores fiscais de estados e municípios o teto remuneratório praticado na União (R$ 41.650,92)